El director brasileño Abelardo de Carvalho nos presenta su largometraje Faroeste, un western barroco que destila toda la esencia de los Spaghetti Western.Con una estética deudora de los films de Sergio Leone la película nos cuenta la historia de Luis Garcia, un controvertido agricultor que termina siendo un fuera de la ley en el estado brasileño de Minas Gerais a principios del pasado siglo.
Desde Adiós Gringo le deseamos mucho éxito con su obra.
Faroeste, “O Sertão é o Mundo
Adriano Reis
É a partir de planos-detalhe da indumentária de Luís Garcia, no início do filme, que o espectador tem o primeiro contato com o personagem central de “Faroeste”. Anéis, o relógio de bolso, o cinturão de couro carregado de balas de revólver, o chapéu, o rifle, as esporas e as botas bem lustradas são mostrados um a um enquanto Luís Garcia se veste. Essa exposição da cena de abertura de “Faroeste” mostra que a mitologia no western nasce de histórias acompanhadas de rituais. O homem de preto, que pela tradição do faroeste americano, em que os trajes escuros são a representação do mau caráter, do homem sem lei, o figurino escuro de Garcia, nas cenas iniciais de “Faroeste”, não permite saber se ele é do bem ou do mal.
Ainda nos momentos iniciais, Luís, por alguns segundos, encara a câmera, em um jogo de câmeras subjetiva com objetiva como se fosse um duelo. Para o espectador fica a expectativa de uma revelação. Porém, é por uma voz em off, que o espectador saberá que ritual de Garcia vai levá-lo à morte: “Luís Garcia… que só gostava do que era bom e bonito… tudo era ouro e prata…por ironia se acabou cravejado por mais ordinário chumbo!” Além da voz em off e da trilha sonora, são ouvidos sons distantes de batidas de um relógio. O som mais acentuado do relógio (referência a Matar ou Morrer, 1952, de Fred Zinnemann) marcará o início do conflito em “Faroeste”.
No Cahiers do Cinéma, André Bazin escreveu que ”Sete Homens Sem Destino” (1956), de Budd Boettiche, trazia na trama rigorosamente clássica todo o encantamento. Bazin também observou que Boettiche soube se servir da paisagem, da terra, do grão e dos rochedos e, sobretudo, da indumentária do xerife, para realizar um dos melhores westerns da história do cinema do pós-guerra. “Faroeste”, longa-metragem de estreia de Abelardo de Carvalho, traz elementos reconhecíveis da iconografia de faroestes americanos aos bang-bangs à italiana. Todavia, Abelardo de Carvalho segue por outras trilhas bem distantes da obra de Boettiche ou do Monument Valley, imortalizado por John Ford e Sérgio Leone. A paisagem de “Faroeste” é a do sertão de Pains, região centro-oeste de Minas Gerais. É o sertão onde se encontram elementos vindos da geografia mineira, da natureza, de rituais míticos-religiosos de pessoas que habitavam o lugar, da arquitetura das fazendas e vilarejos para construir um dos melhores filmes do cinema contemporâneo brasileiro.
O sertão de Abelardo de Carvalho é próximo ao sertão de Guimarães Rosa, “O Sertão é o Mundo”, um mundo que pode ser registrado, transformado e, principalmente, manipulado. Assim, “Faroeste” narra a saga do lendário Luís Garcia, um homem que vagava pela região de Pains, na primeira década do século XX, desafiando o poder de Deus, exorcizando demônios, provocando a ira e criando o mito entre as pessoas do lugar. A história em “Faroeste” é narrada por um Cigano sanfoneiro, que escapa da emboscada à Luís Garcia, em forma de confissão a um padre e a uma roda de pessoas (e a nós espectadores). Partindo do depoimento de Cigano, em flashback, que a obra de Abelardo de Carvalho se distancia dos westerns tradicionais, mesmo se orientando pelos elementos iconográficos eternizados pelos filmes do gênero. A oralidade de Cigano é muito bem trabalhada por Abelardo de Carvalho, criando um jogo de esconde-esconde ambíguo dos acontecimentos obscuros da morte de Luís Garcia. Das idas e vindas da narração de Cigano, no “sertão mundo”, criado por Abelardo, é que nasce o mito no centro-oeste mineiro.
Em “O Homem Que Matou o Facínora”, dirigido por John Ford, em 1962, Ford também faz um jogo não deixando claro se as histórias contatas pelo senador Stoddard, interpretado por James Stewart, são fatos, lendas, mentiras ou verdades. Um dos jornalistas ouvintes do relato do senador, nas cenas finais de “O Homem Que Matou o Facínora”, diz a famosa frase : “Aqui é o Oeste, Senhor. Quando a lenda torna-se fato, publique-se a Lenda”. O importante para Ford e Abelardo não é desmascarar o mito contando a verdade. Assim, o cinema foi criado para que a imaginação e a ilusão se sobrepusessem à realidade.
O pesquisador Paulo Perdigão escreveu no livro “Western Clássico, Gênese e Estrutura de Shane”, ao estudar o faroeste “Shane, Os Brutos Também Amam, de 1953, de George Stevens, que: “a sociedade cria o mito de que necessita, as histórias lendárias são uma ordenação simbólica das exigências e necessidades humanas em determinada situação social”. Deste modo, o homem montado em um cavalo branco, de bigode , com as pontas viradas para cima e zarolho, pode ser a personificação do cangaceiro Lampião do centro-oeste mineiro. Luís trafegava entre o mal e o bem, enfrentando os coronéis, a Igreja, o poder do Estado, bandidos, ciganos, frequentando bordeis e cobiçando riquezas, sendo observado pela vegetação e pela geografia do cerrado. A fotografia de Vinícius Brum dá o tom certo às cores e às imagens do sertão. Em alguns momentos a gente tem a sensação de estar sendo molhado pelo orvalho da manhã. A paisagem em “Faroeste” constrói os símbolos entre Garcia e o seu meio.
“Faroeste” é também uma radiografia de um machismo moldado nos costumes. A direção de Abelardo de Carvalho é rigorosa. Com uma rara maestria técnica, ele consegue fragmentar algumas cenas encerrando- as em si mesmas, reforçando a ideia de distanciamento entre os espaços, o presente e o passado dos acontecimentos dos fatos. A câmera de Vinícius Brum é praticamente fixa. Porém, em alguns momentos, a câmera fica móvel, por exemplo, para acompanhar o galope em disparada de Luís Garcia entre as árvores. A cena, particularmente, me levou ao início do cinema com o lançamento do primeiro western cinematográfico, “O Grande Roubo do Trem”, dirigido por Edwin Porter, em 1903. “O Grande Roubo do Trem” contribuiu com a linguagem cinematográfica apresentando a montagem paralela em episódios, ações em vários lugares e, principalmente, quando a câmera ganha movimentos espetaculares, como nas cenas de perseguição aos bandidos a galope entre árvores.
Outra contribuição importante de “Faroeste” com a técnica cinematográfica brasileira é a do desenho de som. O único áudio captado pela equipe de Bernardo Uzeda é o som guia durante as filmagens. Todas as pistas de som ambiente, da belíssima trilha sonora (composta por Uzeda) dos diálogos, dublados por nomes famosos da dublagem nacional, foram colocados posteriormente em estúdio. Conforme já citei acima, muitos sons extracampo nos auxiliam a acompanhar a história, como as batidas do relógio nas cenas iniciais do filme ou da quebradeira da casa de Luís pelos homens da guarda. A dublagem das falas dos atores em “Faroeste” é uma homenagem de Abelardo aos faroestes dublados, exibidos pelas sessões bang bangs da TV.
Porém, essa exacerbada criatividade linguística está bem mais próxima de o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, com a utilização de elementos linguísticos “do homem do mato”. Do ponto de vista da linguagem, o trabalho de elenco, especialmente, de Wladimir Winter (Luís Garcia) e Dellani Lima ( cigano sanfoneiro), sob a batuta de Abelardo, contribuiu bastante para o casamento perfeito da dublagem das falas e da construção dos personagens pela interpretação dos atores e dos dubladores. Além de atores profissionais, o elenco do filme é formado por moradores de Pains. A população local atuando praticamente interpretando eles mesmos, dá ao filme um sentido documental. Muitos nunca estiveram em um cinema. Neste “lugar-mundo” ou “sertão-mundo”, Luís Garcia continua presente, pois, na cena final, ao passar pelo corpo de Garcia, Cigano continua a cavalgar remontando o passado rumo ao presente.